segunda-feira, outubro 16, 2006

A Outra Carta

(Ele)


Hoje lembrei-me de ti. Não que precisasse de qualquer facto específico, ou sequer de uma explicação para me lembrar, mas hoje houve uma razão e aconteceu qualquer coisa.

Era de noite e as ruas estavam cheias. Noites de Verão, cafés e um cheiro a festa no ar. Agitação e sempre uns copos a mais. Um dia como tantos outros e ainda não era muito tarde. E lá estavam eles os dois, a passear muito devagarinho. Era um casal, e já deviam ter os seus 70 e tal. Ela, agarrada a ele, baixa e curvada, num esforço a cada passo, mas sempre o mesmo sorriso. Ele, calvo e enrugado, tentando protegê-la e segurando-lhe o braço, como se pudesse travar a passagem do tempo. Tão unidos, na sua alegria passiva, caminhando para casa, gozando cada passeio, cada sorriso e cada palavra.

Seria amor o que os unia? Não sei. Talvez habituação, muita paciência e um pouco de carinho. Não será isso amor? Quem consegue desmenti-lo? (E se fosse o caso, talvez tivessem mesmo conseguido parar o tempo...)

Deslumbrei-me ao vê-los e não consegui deixar de pensar em nós. Teríamos conseguido sobreviver? Que seria da nossa paixão, da nossa loucura desmedida, dos risos e dos abraços, das nossas excentricidades ao 70 anos? Seriam paciência, habituação e simplesmente carinho? Seríamos amor?

Sonhei, um dia, que sim. Sim, eu cheguei a pensar em família, filhos e, até, em netos. O primeiro ia ser um rapaz, Gabriel, como o anjo, a rapariga Sara. Os outros nomes podias tu escolher (porque , sim, íamos ter uma verdadeira equipa de futebol). Oh, e nem me perguntes como fui imaginar isto tudo, mas recordei-me de tanta coisa quando vi aquele casal. Quis tanto que fosse o nosso futuro. Quis tanto que até doeu.

Não sei como fomos capazes de continuar, de nos ignorarmos, de sorrirmos placidamente. A ditadura das conveniências, dizem. Porque tudo se resume às aparências. Mas não consigo deixar de negar a aparência do brilho nos teus olhos, do riso branco e das frases suspiradas. Não podiam ser aparência, eram verdades. Eram o absoluto do real.

Realidade em bruto.

Dizem que os segredos mais escondidos são aqueles que nem nos atrevemos a contá-los a nós próprios. E é verdade. Todas as mentiras que eu contava, acreditava nelas, fazia parte delas. Mas, à medida que te escrevo esta carta surgem lapsos de feridas que saltam no caminho das minhas palavras, me estonteiam e me fazem descobrir o quanto falhei, mais do que a ti, a mim próprio. Os pensamentos que encontram o fio condutor, as mentiras que se desfazem e uma dor que me faz falta a crescer dentro de mim. E uma vontade cada vez maior de chorar (e foste a única por quem alguma vez chorei). E quantas vezes queria voltar atrás, tantos erros e segundos desperdiçados em que podia ter tentado mais uma vez. Mas a cobardia sempre esteve lá e tu sabias bem disso...

E quantas vidas, amores, dias e odores nos hão-de passar despercebidos? E amava-te, sim, em cada rumor dos teus passos e no mais efémero toque na tua pele. E até te confesso que aquelas canções lamechas (melodias repetidas, letras invertidas) me faziam sorrir estupidamente. Ritmos inquietos, alma acorrentada que, de qualquer forma, se conseguia espelhar numa voz nostálgica e longínqua (e sempre o acorde da guitarra a tocar mais fundo).


Oh.. e quem me dera descansar de cada vez que durmo.


Porque os sonhos que me atormentam avivam-se e retocam-se durante o dia. São os momentos de um Inverno perdido que se aperfeiçoam com o tempo, cada vez mais distantes, cada vez mais melosos. Aquele frio tão quente que nos percorria o corpo num arrepio de ternura culminando nas mãos dadas ou noutro abraço. Nos beijos mais longos e na sintonia de mais um olhar. Era tudo tão perfeito, na mais pura simplicidade e nem sabes o quanto me arrependo de não o ter percebido mais cedo. Porquê esta mania do tempo tornar todas as recordações mais simples e perfeitas? Maldita ilusão que só nos faz desejar o passado... Maldita dor que só me faz querer o teu presente!

E escrevo, escrevo, não consigo deixar de escrever. Escrever como despejar sentimentos porque chorar turva-nos a vista e a razão e escrever ilucida-nos. Chorar dói no rancor de recordar, escrever é pura melancolia. Chorar entorpece, enfraquece-nos, escrever faz-nos cada vez mais fortes. Mas nenhuma força, nenhuma vontade poderiam quebrar a mágoa de te ter deixado partir, a culpa de termos seguido caminhos separados.







(Oh, doía demasiado a possibilidade de não encontrar o teu olhar. Agora desfaço-me na incerteza de o ter podido encontrar.)



11 comentários:

Unknown disse...

Que mais se pode dizer acerca deste texto regado de sentimento!

Sabes quem está certo é o Miguel Esteves Cardoso, o amor é fodido!

No meu caso já em fodeu algumas vezes. E tenciono afastar-me um pouco desse sentimento, vivendo o dia-a-dia como nada se passasse no meu íntimo! É extremo, mas é reconfortante! Agarrar-se alguém é muito bonito, mas quando perdes os braços é uma merda!

porta-te ;)

Anónimo disse...

Ele escreve tão bem Diana. Ela em Janeiro pediu-lhe desculpa, a resposta foi tardia.
Une-os Diana, pelo que escreveram merecem a reconciliação e depressa.

Unknown disse...

Pah, tenho de ver isso da participação na NovArt! Primreiro porque teria de ver o que realmente enviaria! Depois porque ando com muito trabalho na faculdade! Mas de qualquer forma seria engraçado ;)

Deixo-te aqui o meu mail, leandrosoubast@hotmail.com, não só para falar acerca desse evento, mas também para falar de muitas outras coisas! Já é mais que legítimo dar-to, depois das nossas sucessivas invasões blogisticas... e pronto, smp é mais um contacto! xD

porta-te*

vida de vidro disse...

Um texto de amor, ilusão e perda. Repetem-se os ciclos do amor. **

Anónimo disse...

A minha concreta alma de rapaz versado nos números, espanta-se perante esta arte de exprimir o sentir... Serão os meus olhos de leigo que me fazem acha-la tão bem conseguida?

"Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus."

n deixes d t expressar!**

PAULO SANTOS disse...

Hoje partilho um certo silencio no comment...
Depois de te ler... ficou um estranho vazio....
Aquele que entendes....
surpreendeste-me com este texto....
Demasiado...


Paulo

J. disse...

acho que n é preciso falar muito! Lindo! O amor é mesmo essa conjugação, a paixão esbate.se e sobra isso! De resto: gosteiiii!

PAULO SANTOS disse...

Vim reler este texto.
Que verdadeiramente gostei!
uM BEIJO MAIS

Paulo

T. disse...

amei amei amei...lindo.

StupiDreamer disse...

oh ams e depois se a relidade tivesse vindo estragar a perfeição do amor perfeito e (sempre) impossível? A incerteza da possibilidade aberta de algo real secalhar fica mais bonita do que o descambar e decepção do fantástico no dia-a-dia do olá bom dia, tneho de ir à acsa de banho.
O verdadeiro amor (o tal platonico) secalahr é emsmo feito pra ser impossível, é a sua graça. Para doer.
secalhar..é mesmo fodido. @

Marco Pereira disse...

Assutadoramente arrebator...

Adorei! **



www.crisantemorefugio.blogspot.com